A exposição de crianças na internet reacendeu, nos últimos dias, um debate nacional sobre o fenômeno conhecido como adultização. A discussão ganhou força após um vídeo do influenciador Felipe Brassanim Pereira, o Felca, atingir mais de 35 milhões de visualizações no YouTube, mobilizando parlamentares de diferentes espectros políticos a acelerar projetos de lei para proteger crianças e adolescentes no ambiente digital.
“Quando quebramos o ciclo natural da infância e colocamos a criança em um contexto adulto, iniciamos o processo de adultização”, explica Michelly Antunes, líder do programa Nossas Crianças, da Fundação Abrinq.
O professor Guilherme Polanczyk, da Faculdade de Medicina da USP, ressalta que muitos pais acreditam, de forma equivocada, que antecipar etapas gera maturidade. Ele compara o processo a oferecer carne para um bebê de seis meses — algo fisicamente impossível de ser digerido. “O cérebro se desenvolve por fases, e pular essas etapas compromete a capacidade de lidar com pressões e emoções no futuro”, afirma.
Efeitos imediatos e futuros
O impacto da adultização vem sendo estudado há mais de um século. Um relatório britânico de 1904 já alertava para consequências como irritabilidade e exaustão emocional entre crianças, na época submetidas ao trabalho em fábricas. Hoje, pesquisas apontam maior propensão à ansiedade, depressão, dificuldades de socialização, baixa empatia e problemas de aprendizagem.
Quando o processo envolve sexualidade precoce, os riscos se estendem à distorção da autoimagem, queda na autoestima e sexualização excessiva. “Sinais como irritabilidade constante, isolamento, uso de linguagem adulta e desinteresse por brincadeiras podem indicar que a criança está sendo adultizada”, alerta o neuropediatra Anderson Nitsche, do Hospital Pequeno Príncipe.
O peso das redes sociais
Embora seja um fenômeno antigo, a adultização ganhou força com o avanço das redes sociais. Dados do Cetic.br revelam que 93% dos brasileiros entre 9 e 16 anos usam a internet, sendo que um quinto acessa antes dos seis anos. Esse contato precoce influencia desejos, comportamentos e padrões de consumo, além de ativar mecanismos cerebrais de recompensa que incentivam a busca constante por curtidas e engajamento.
O córtex pré-frontal — responsável por decisões racionais — só amadurece totalmente entre os 20 e 25 anos, o que torna crianças e adolescentes mais vulneráveis a impulsos e pressões digitais.
Caminhos para proteção
Para Evelyn Eisenstein, coordenadora do Grupo de Trabalho Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, é fundamental unir ações familiares e medidas legais. O PL 2628, já aprovado no Senado, prevê que plataformas digitais adotem mecanismos de proteção, como controle parental e remoção de conteúdos prejudiciais.
No dia a dia, especialistas recomendam evitar a exposição excessiva de imagens de crianças, controlar o tempo de tela — zero para menores de 2 anos, até 1 hora para crianças de 2 a 6 anos e, no máximo, 2 horas para as maiores — e incentivar experiências fora do ambiente virtual.
“O gato que a criança vê na tela é bidimensional; o que pula no colo dela é tridimensional. É esse contato real com o mundo que precisamos preservar”, conclui Eisenstein.