Em tempos de internet, redes sociais e telas por todos os lados, a infância também se transformou. Hoje, pediatras e psicólogos já tratam o “tempo longe do celular” como uma verdadeira prescrição médica.
A pediatra Renata Aniceto, membro do Departamento Científico de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), diz que há anos inclui entre suas orientações o convívio familiar e as brincadeiras ao ar livre, ao lado de hábitos tradicionais como boa alimentação e vacinação.
“Eu quero que no fim de semana vocês tenham pelo menos duas horas de brincadeiras no parque, que cozinhem juntos, joguem tabuleiro, façam algo em família. É um retrocesso necessário. Muitos pais não sabem mais brincar com os filhos porque também cresceram conectados às telas”, explica.
Com quase três décadas de experiência, Renata observa uma mudança profunda no comportamento infantil e familiar após a popularização dos celulares e tablets.
“Houve uma desconexão entre pais e filhos. Não são só as crianças que passam horas nas telas — os adultos também. Isso trouxe consequências sérias, como aumento de casos de ansiedade e depressão em crianças, temas que antes nem faziam parte da formação médica”, aponta.
A psicóloga Angela Uchoa Branco, professora da Universidade de Brasília (UnB), reforça a importância das interações presenciais. Segundo ela, o brincar livre e o contato face a face com outras pessoas são essenciais para o desenvolvimento emocional e cognitivo.
“Contação de histórias, leitura antes de dormir e brincadeiras com jogos de tabuleiro ajudam na criatividade e no gosto pela leitura. Sempre que possível, é importante levar as crianças para brincar ao ar livre e conviver com a natureza”, orienta.
O perigo do excesso de telas
A Sociedade Brasileira de Pediatria atualizou suas recomendações sobre tempo de tela, estabelecendo limites rigorosos:
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De 0 a 2 anos: nenhuma exposição, nem passiva;
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De 2 a 5 anos: até 1 hora por dia, com supervisão;
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De 6 a 10 anos: de 1 a 2 horas diárias, supervisionadas;
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De 11 a 18 anos: no máximo 3 horas por dia, evitando uso noturno.
Renata alerta que o uso excessivo de telas prejudica o desenvolvimento cognitivo.
“As telas estimulam áreas cerebrais menos importantes e podem comprometer foco, memória e aprendizado. Além disso, a inatividade física aumenta os riscos de obesidade infantil”, explica.
Leitura e imaginação: antídotos digitais
Para Lia Jamra, diretora executiva da ONG Vaga Lume, que atua há 25 anos com educação na Amazônia Legal, incentivar a leitura é uma das formas mais eficazes de reduzir o tempo de tela.
“Ler para as crianças é uma forma poderosa de ampliar repertório e desenvolver empatia e imaginação. A infância amazônica é um exemplo de equilíbrio: as brincadeiras ao ar livre fazem parte do cotidiano, como mergulhar no rio ou brincar na terra”, afirma.
Sono e o impacto das telas
O sono é outro pilar do desenvolvimento infantil. Segundo Renata, o uso de dispositivos eletrônicos à noite interfere diretamente na produção de melatonina, hormônio responsável pelo início do sono.
“A luz das telas engana o cérebro e atrasa o sono, causando despertares noturnos. O descanso é o momento em que o cérebro consolida aprendizados e regula hormônios essenciais, como os de crescimento e de controle do apetite”, explica a pediatra.
Diálogo e afeto
Angela Uchoa lembra que educar com diálogo e respeito é essencial para o desenvolvimento emocional saudável.
“Limites são necessários, mas sem agressões físicas. O diálogo deve ser constante e em momentos adequados. O exemplo dos pais é o maior ensinamento. Demonstrar afeto, elogiar conquistas e ensinar com respeito fortalecem a autoestima e a confiança da criança”, reforça.
Alimentação: o exemplo vem da mesa
A professora Diana Barbosa Cunha, do Instituto de Medicina Social da Uerj, destaca que os hábitos alimentares formados na infância tendem a se manter por toda a vida.
“A introdução alimentar, por volta dos seis meses, deve ser tranquila e baseada na descoberta dos alimentos. O leite materno segue sendo fundamental nessa fase”, explica.
Ela ressalta a importância do exemplo familiar:
“Crianças aprendem observando. Se a família se alimenta bem, elas tendem a seguir o mesmo caminho. É essencial priorizar alimentos naturais e reduzir o consumo de ultraprocessados”, orienta.
Diana também recomenda incluir as crianças nas tarefas da cozinha:
“Levar à feira, deixar que escolham frutas e legumes, ajudar a lavar e cortar os alimentos — tudo isso fortalece o vínculo e estimula hábitos saudáveis”, conclui.
Equilíbrio é a palavra-chave
Especialistas concordam que o desafio das famílias modernas é buscar equilíbrio: menos tempo nas telas e mais tempo de convivência real. O brincar, o diálogo, o sono e a alimentação consciente continuam sendo as bases para uma infância feliz e saudável — mesmo em tempos digitais.