Neste 31 de maio, Dia Mundial sem Tabaco, a Fundação do Câncer e diversas organizações decidiram mirar com precisão o alvo mais dissimulado do mercado de nicotina: os cigarros eletrônicos — ou, como preferem os fabricantes, vapes.
Bonitos, coloridos, aromáticos. Embalados com sabores de tutti-frutti e aparência de gadget de luxo, os vapes vêm conquistando uma geração que cresceu ouvindo que o cigarro mata, mas que agora é seduzida por um produto disfarçado de inovação. E é aí que mora o perigo.
A roleta da ilusão
No sábado, a Praia de Ipanema, cartão-postal do Rio e reduto de jovens, será palco de uma ação interativa: a “Roleta que dá a real”. A mecânica é leve, quase divertida — girar a roleta e ganhar um brinde. Mas o prêmio é acompanhado de verdades incômodas: cards com dados e reflexões sobre os riscos do uso dos cigarros eletrônicos.
“Usamos a linguagem deles para abrir os olhos. O jovem precisa se reconhecer na mensagem, não rejeitá-la”, explica Luiz Augusto Maltoni, diretor executivo da Fundação do Câncer.
Embalagem atrativa, conteúdo tóxico
Segundo dados do Ministério da Saúde, 70% dos usuários de vapes no Brasil têm entre 15 e 24 anos. Essa é, para a indústria, a mina de ouro. Não à toa, os dispositivos são desenvolvidos com sabores doces e design chamativo — é uma armadilha de marketing bem arquitetada, cujo objetivo não é ajudar ninguém a parar de fumar, como tentam vender, mas sim criar uma nova geração de dependentes.
O Levantamento Nacional sobre Álcool e Drogas revela o que a experiência já denunciava: 77% dos usuários dizem que o vape não ajudou a parar de fumar cigarro comum. O discurso da “alternativa segura” cai por terra diante dos dados — e do dano real.
Resistência em rede
A campanha da Fundação do Câncer é fruto de uma coalizão com outras entidades de peso, como o Movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), a ACT Promoção da Saúde, a Abrale e a Femama. Mais de 50 instituições de todo o país apoiam a causa, que vai além da conscientização: exige ação política.
O movimento lançou uma carta-manifesto aos Poderes Executivo e Legislativo pedindo a manutenção da proibição dos dispositivos eletrônicos para fumar, vigente no Brasil desde 2009 e reforçada em 2024 pela Resolução RDC nº 855 da Anvisa.
O Brasil resiste — por enquanto
A legislação brasileira é, nesse ponto, mais protetiva que a de países como EUA, Reino Unido e Austrália. Mas como lembra o epidemiologista do Inca, André Szklo, isso não significa que a batalha está ganha.
“Os produtos continuam circulando, muitas vezes contrabandeados, com aceitação social. O problema é de fiscalização, sim, mas também de cultura”, diz ele.
Szklo aponta uma ameaça ainda mais perversa: o vape como porta de entrada para o cigarro convencional. “Estabelecida a dependência, o jovem tende a migrar para o cigarro comum, mais barato e ainda mais letal. É um ciclo de dano progressivo que interessa à indústria, não ao indivíduo.”
Uma indústria que lucra com a morte
O estudo “A Conta que a Indústria do Tabaco Não Conta”, lançado este mês pelo Inca, joga luz sobre a matemática perversa por trás dessa engrenagem. Para cada R$ 1 de lucro obtido pela indústria do tabaco, o governo brasileiro gasta R$ 5 tratando as doenças causadas pelo fumo.
“É uma conta que nunca fecha para a saúde pública”, resume Szklo. “Cada real gasto com marketing e influencers para promover o vape tem como contrapartida uma vida perdida. Esse dinheiro está carimbado com sofrimento.”
A urgência do despertar
Para Milena Maciel de Carvalho, consultora da Fundação do Câncer, “desmascarar o vape é um dever coletivo”. Ela reforça o apelo da campanha para que pais, educadores, profissionais de saúde e influenciadores sociais encarem o problema com a seriedade que ele exige.
“Estamos diante de uma geração que confunde design com segurança. Precisamos falar com franqueza: o vape é um produto bonito que adoece, vicia e mata.”
Neste Dia Mundial sem Tabaco, a pergunta que fica é simples e brutal: até quando vamos permitir que a próxima geração seja enganada por uma embalagem colorida? A fumaça do vape pode parecer inofensiva, mas o estrago que ela causa é muito real. E está mais perto do que se imagina.