Um amplo estudo conduzido por pesquisadores brasileiros com 795 crianças e adolescentes entre 6 e 21 anos revelou que a exposição a maus-tratos na infância pode causar alterações estruturais no cérebro, especialmente no hipocampo — região central para funções como memória, aprendizagem e regulação emocional. Os resultados, publicados na revista Psychological Medicine, da Universidade de Cambridge, evidenciam as consequências profundas e duradouras do trauma precoce.
O trabalho utilizou dados da Brazilian High-Risk Cohort (BHRC), um dos maiores estudos longitudinais da América Latina sobre saúde mental infantil, conduzido pelo Centro de Pesquisa e Inovação em Saúde Mental (CISM), com sede na Faculdade de Medicina da USP (FM-USP). A pesquisa contou com apoio da Fapesp e do Banco Industrial do Brasil (BIB).
Os pesquisadores analisaram exames de ressonância magnética em três momentos diferentes ao longo dos anos, combinando essas informações com relatos dos próprios participantes e de seus responsáveis. O foco foi entender como a intensidade e frequência do trauma na infância influenciam o desenvolvimento do cérebro ao longo da adolescência.
Os resultados mostraram que altos níveis de trauma estão relacionados a uma redução persistente no volume do hipocampo direito. Esse impacto se manteve mesmo após o controle de variáveis como transtornos mentais e fatores genéticos. Já o hipocampo esquerdo apresentou menor sensibilidade a essas alterações, o que sugere que os dois lados do cérebro reagem de maneira distinta ao estresse precoce.
“O hipocampo é essencial para processar emoções, formar memórias e lidar com o estresse. Quando afetado por traumas, as consequências podem se refletir em dificuldades emocionais e cognitivas durante toda a vida”, explica a psiquiatra Victoria Doretto, primeira autora do estudo e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FM-USP.
A pesquisa, resultado da tese de doutorado de Doretto, orientada pelos professores Eurípedes Miguel e Pedro Pan, reforça a importância de políticas públicas voltadas à proteção da infância. “Precisamos de estratégias eficazes de prevenção e tratamento precoce para reduzir os danos que o trauma pode causar no desenvolvimento das crianças”, destaca a autora.
Além de ampliar a compreensão sobre os efeitos do estresse infantil no cérebro, o estudo aponta para a necessidade de novas investigações de longo prazo que acompanhem a evolução dos impactos ao longo da vida e explorem metodologias mais precisas para identificar a exposição ao trauma.
A mensagem central dos pesquisadores é clara: oferecer ambientes seguros e apoio adequado na infância é fundamental não apenas para o bem-estar imediato, mas também para a saúde mental e o funcionamento neurológico a longo prazo.